No sudoeste do Piauí, onde estão importantes nascentes para o Rio Parnaíba e para seu principal afluente, o Uruçuí-Preto, pequenos produtores rurais travam uma disputa cotidiana. Desde a entrada da fronteira agrícola da soja, que ocupa vales e chapadas com alta capacidade de drenagem, falta água para as pequenas plantações em uma região já marcada por períodos prolongados de seca. Técnicos ambientais que desenvolvem diagnósticos no Vale do Rio Uruçuí-Preto constatam um cenário de intenso conflito.
Antes, se dois agricultores conviviam pacificamente numa mesma área, agora só existe disponibilidade hídrica para um deles. O recurso utilizado por muitos desses produtores é trancar com corrente e cadeado as rodas d’água de proprietários que representam um risco na busca pela água. Essa disputa se estende a três assentamentos rurais na região. Não há abastecimento nem infraestrutura para tanto: cada assentado tem uma fonte própria, o que alimenta os conflitos.
Em outros estados do Nordeste, o foco dos problemas é a necessidade de uma grande quantidade de água para o consumo animal. A briga na região do Rio São Francisco abrangida pelo Cerrado é protagonizada pelas empresas que constroem usinas hidrelétricas e pelos grandes produtores rurais, dependentes de pivôs de irrigação. O setor elétrico duela por água — o principal oponente é o setor de transporte hidroviário — em pelo menos três bacias: São Francisco, Tocantins-Araguaia e Paraná.
O conflito pelo uso da água no Cerrado, percebido em diversas regiões, é o resultado mais irônico e mais prático do desmatamento sem controle do bioma. O Cerrado abastece 1,5 mil municípios brasileiros, fornece água para o Pantanal e a Amazônia, contribui para recursos hídricos até mesmo na costa brasileira. Ironicamente, as disputas por água se tornaram cada vez mais frequentes, assim como a exploração irregular e ilegal de poços profundos. Falta água na superfície. Para muitos, a saída mais apressada é a perfuração de poços sem autorização de órgãos competentes.
Duelos no DF
A realidade no Distrito Federal, uma região rica em nascentes e fornecedora de água para o restante do país, resume essa situação. Um levantamento da Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do DF (Adasa) identificou 25 mil usuários irregulares de água superficial e subterrânea, tanto em áreas urbanas quanto na zona rural. A quantidade era bem maior: 5,5 mil se regularizaram nos últimos anos.
O período de seca — de maio a setembro — é de disputa por água, em especial na Bacia do Pipiripau, uma região permeada por nascentes. Foi necessário um decreto do Governo do DF, de setembro do ano passado, para disciplinar o uso da água e dirimir os conflitos.
Duelam pelas águas do Pipiripau, na divisa do DF com o município de Formosa (GO), grandes produtores de café, empresas de extração e lavagem de areia, os pequenos produtores do Canal Santos Dumont e a Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb), que extrai a água para o abastecimento de Planaltina (DF). O Pipiripau já é fonte de abastecimento de Planaltina há 11 anos. Desde então, os produtores do Canal Santos Dumont — que produzem frutas, verduras e hortaliças no local há quase três décadas — precisaram mudar a maneira de plantar. A água que escorre pelo canal, construído para facilitar o abastecimento das propriedades rurais, tornou-se mais escassa. O racionamento do uso foi a única saída.
O decreto do GDF estabeleceu as regras do revezamento no uso da água. Para o Canal Santos Dumont, a vazão precisou ser diminuída em 100 litros por segundo. Em períodos de maior seca, a água chega dia sim, dia não ao canal, que tem mais de 15 quilômetros, levando-se em conta as ramificações. A associação dos produtores do local é responsável por fechar, com cadeados, as pequenas comportas ao longo do canal. Esse controle já ocorre há 10 anos. Em épocas mais críticas de falta de chuva e de secura do Pipiripau, os produtores chegaram a perder 60% do que foi plantado.
Antes de a Caesb começar a retirar água para o abastecimento de Planaltina, 570 litros de água chegavam ao Canal Santos Dumont a cada segundo. Agora, são 350 litros, quantidade que cai pela metade durante a seca. “A gente procura usar a água da maneira mais racional”, diz o produtor rural José Yeide Makiama, 49 anos. Seu Zezinho, como é conhecido, está na região há 20 anos. Planta limão, abacate, manga, chuchu, tomate e mandioca, a exemplo de outros 30 japoneses ou descendentes que estão no local. A partir de junho, começa o período da “cautela”, como diz.
Ele se lembra de uma ameaça do GDF de cortar pela metade o fornecimento de água aos produtores. “O governo alegou que a gente desperdiça água. Mas, aqui, o uso é controlado, com uma tecnologia mais econômica, e impermeabilização dos reservatórios”, conta. “Se não fosse a gente, isso aqui já teria virado um condomínio há muito tempo.” O Parque Piquizeiro, uma área preservada de Cerrado de 770 hectares, está localizado no núcleo rural do Canal Santos Dumont.
Na semana passada, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou um relatório anual sobre conflitos no campo. A disputa pela água foi a que mais cresceu em 2010, em comparação com 2009. Quase 200 mil pessoas estiveram envolvidas — direta ou indiretamente — em algum tipo de conflito. A maioria deles, conforme o documento, ocorreu na Bahia, estado por onde avança a fronteira agrícola da soja e onde estão os municípios líderes em desmatamento do Cerrado.